A conformidade fiscal cooperativa no fortalecimento da segurança jurídica

A conformidade fiscal cooperativa é um modelo que visa trazer para o paradigma do serviço o relacionamento entre Fisco e Contribuinte, fortalecendo a segurança jurídica em matéria tributária.
Euclides Silva
Euclides Silva
Advogado. Mestrando em Ciências Jurídicas pela Ambra University. Pós-Graduado em Direito Público pela Universidade Estácio de Sá. Pós-Graduado em Direito Civil e Direito Processual Civil pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE). Graduado em Direito pela Universidade da Região de Joinville (UNIVILLE).

OS PARADIGMAS DA RELAÇÃO ENTRE FISCO E CONTRIBUINTE

As relações estabelecidas entre o Estado, como sujeito ativo da relação jurídico-tributária, e o Contribuinte, como sujeito passivo da relação jurídico-tributária, tem sido objeto de muitos estudos, críticas e questionamentos, ante o aspecto essencialmente conflituoso que estas relações assumem no Brasil. Em consequência, observa-se a sua  dissociação ao que prescrevem as normas constitucionais sobre o tema, especialmente às referentes ao Sistema Constitucional Tributário (artigos 145 a 162 da CRFB/88), levando ao incremento da litigiosidade tributária, além de perceptíveis efeitos na arrecadação e na evasão fiscal.

Diante de tal quadro fático, há a necessidade premente de que estas relações assumam um caráter conforme à Constituição Federal, em zelo aos direitos fundamentais, seja no aspecto referente à limitação do poder de tributar, seja no aspecto relativo à dotação de recursos necessários para que o Estado preste os serviços públicos adequados à população.

Com o intuito de classificar os paradigmas regentes do relacionamento entre os sujeitos da relação tributária, a doutrina tradicionalmente sustenta a existência do paradigma do crime e do paradigma do serviço.

O paradigma do crime é aquele em que o Fisco age de forma prioritariamente repressiva, com a adoção de fiscalizações e punições severas, para evitar a desconformidade tributária do Contribuinte, baseando-se no pressuposto de que o receio de punição é o principal fator a determinar a observância das leis tributárias.

O paradigma do serviço, por sua vez, baseia-se em pressuposto distinto, calcado no fato de que diversos fatores influenciam na observância da lei tributária pelo Contribuinte, como o altruísmo, a moral tributária, a facilidade no cumprimento das obrigações acessórias e até mesmo a utilização dos recursos arrecadados em benefício da população. Desta maneira, o Fisco assume postura baseada no respeito, confiança, auxílio ao Contribuinte quanto ao cumprimento das obrigações tributárias e segurança jurídica.

Neste sentido, Lucas Cavalcante[1] traz as seguintes considerações sobre as vantagens do paradigma do serviço:

“O Estado passa a tratar o contribuinte como um cliente da administração pública, prestando um serviço de excelência, de forma assertiva, pontual, tempestiva e coerente. O papel do Estado passa a ser auxiliar no recolhimento do tributo, sanando as dúvidas e esclarecendo as obscuridades da legislação. Quando possível, oportunizar ao contribuinte uma autorregularização voluntária sem a aplicação de pesadas penalidades tem o poder de contribuir para a construção dessa nova relação.

A ideia de fundo do paradigma do serviço é deslocar os sujeitos da relação tributárias de lados opostos e construir uma relação de parceria, afastando-se da ideia de que o fisco deve buscar a arrecadação apesar de tudo, em prol de uma relação de confiança, que busca o recolhimento do tributo na forma e no tempo corretos de acordo com a legislação”.

Há diversos estudos no âmbito da OCDE apontando a adoção do paradigma do serviço pelo Fisco como de fundamental importância, visando a evitar a ocorrência do tax gap, que é a diferença entre as obrigações tributárias previstas na legislação e o que é efetivamente arrecadado do Contribuinte.

DA INSEGURANÇA JURÍDICA DECORRENTE DO PREDOMÍNIO DO PARADIGMA DO CRIME

A segurança jurídica em relações jurídico-tributárias é de importância basilar para o Estado de Direito, tendo em vista a plêiade de princípios e direitos fundamentais envolvidos (capacidade contributiva, direito de propriedade, legalidade, isonomia), cuja função consiste na proteção contra arbitrariedades na atividade de tributação. Sem um efetivo estado de segurança jurídica, faltarão os impeditivos e mecanismos necessários para o efetivo cumprimento das normas constitucionais tributárias.

Neste ponto, cabe trazer a célebre conceituação de segurança jurídica concebida por Humberto Ávila[2]:

Em face de todas as considerações anteriores, pode-se conceituar a segurança jurídica como sendo uma norma-princípio que exige, dos Poderes Legislativo, Executivo e Judiciário, a adoção de comportamentos que contribuam mais para a existência, em benefício dos cidadãos e na sua perspectiva, de um estado de confiabilidade e de calculabilidade jurídica, com base na sua cognoscibilidade, por meio da controlabilidade jurídico-racional das estruturas argumentativas reconstrutivas de normas gerais e individuais, como instrumento garantidor do respeito à sua capacidade de – sem engano, frustração, surpresa e arbitrariedade – plasmar digna e responsavelmente o seu presente e fazer um planejamento estratégico juridicamente informado do seu futuro”.

O predomínio do paradigma do crime nas relações tributárias destaca-se como um fator-chave para a criação de um permanente estado de insegurança jurídica no país. O Contribuinte encontra-se imerso em regulações obscuras, complexas e conflitantes entre si quanto às regras para o cumprimento de obrigações acessórias, com o acarretamento de um excessivo dispêndio de tempo e recursos apenas para o seu atendimento, sem paralelo em qualquer outro país.

Já o Fisco se vale de aplicação de penalidade severas, consubstanciadas em vultosas multas, desproporcionais em relação à gravidade ao desatendimento da legislação e ao valor da obrigação principal, o que normalmente leva à instauração de contencioso administrativo e judicial fiscal. As relações concorrenciais são afetadas por este estado de coisas, na medida em que muitos Contribuintes buscam montar planejamentos tributários abusivos, dentre outros estratagemas, com o propósito de obter vantagens perante os seus concorrentes diretos, quebrando o princípio da isonomia tributária. Outrossim, o complexo sistema tributário brasileiro tem afastado muitos investimentos internos e externos, atrapalhando o bom funcionamento da economia nacional.

Então, a relação entre os sujeitos da relação tributária deve estar orientada pelo paradigma do serviço. Desta forma, contribui-se para o respeito e efetividade das normas constitucionais e constrói-se um estado de segurança jurídica fortificador do Estado de Direito e da prosperidade da nação. A respeito deste estado de segurança jurídica, Heleno Taveira Torres[3] assim preleciona:

“A normalidade é o “estado de segurança” ou “estado de confiança”. Quando um ou outro suporta alguma quebra de certeza ou de atuações nas dobras da Constituição, justificadas apenas por decisão da Autoridade Administrativa, e, conforme o caso, até mesmo pelo Estado-Juiz, mas sem que se configure estabilidade e segurança jurídica, confirmam-se prevalecentes o “estado de insegurança”, o estado da “quebra da confiança”, o “estado de exceção permanente”, portanto, instalados no Sistema Tributário”

A relação calcada neste novo paradigma deverá estar orientada pela boa-fé objetiva de ambas as partes, com vista ao cumprimento dos deveres de cooperação e colaboração. A boa-fé objetiva, manifestada por um padrão ético de comportamento, deverá preservar a confiança estabelecida pelas partes, cuja fonte primária está nas normas regentes do Sistema Constitucional Tributário. Manifesta-se, por conseguinte, a patente inconformidade do paradigma do crime com a garantia da segurança jurídica e os ditames constitucionais.

ORIGENS E PILARES DA CONFORMIDADE FISCAL COOPERATIVA

A adoção do paradigma do crime no relacionamento entre os sujeitos da relação jurídico-tributária é algo que causa preocupação também a nível internacional, o que levou a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE a conceber alternativas e estratégias para a sua superação, a partir da constatação inicial de que empresas multinacionais se valem de um planejamento tributário agressivo com o intuito de transferir recursos para locais que oferecem um tratamento fiscal mais favorável.

O modelo de relacionamento aprimorado (enhanced relationship) foi desenvolvido pela OCDE, a partir de um estudo no ano de 2008, baseada na recomendação de que as Administrações Tributárias estabeleçam com os Contribuintes um ambiente tributário de confiança e cooperação, encorajando especialmente os grandes pagadores de impostos à conformidade fiscal voluntária.

Embora este relacionamento aprimorado represente antes um conjunto de diretrizes de ações e princípios referente ao modo de atuação das Administrações Tributárias e dos Contribuintes, em consonância com o paradigma do serviço e as legislações da maioria dos países democráticos, o meio mais efetivo de concretização deste modelo dá-se por meio de programas específicos de conformidade fiscal, que poderão ser destinados a uma ou mais categorias de Contribuintes e serão voluntários, por conta das exigências de condutas de transparência e divulgação.

Para isto, foram estabelecidos sete pilares para que o modelo de relacionamento aprimorada possa prevalecer, distribuídos entre posturas a serem adotadas pelos Contribuintes e posturas a serem adotadas pelo Fisco.

O Contribuinte deve oferecer para com o Fisco:

  • divulgação, consistente na transmissão das informações ao Fisco sobre todos os atos ou negócios sujeitos à tributação, indo mesmo além do fornecimento das informações que são legalmente exigíveis;
  • transparência, que se trata da formação de um ambiente claro e límpido de divulgação das informações de relevância tributária.

O Fisco, em contrapartida, deve oferecer para o Contribuinte:

  • entendimento baseado em consciência comercial, ou seja, deve-se buscar o entendimento das operações comerciais praticadas pelo Contribuinte, a fim de subsidiar a sua atuação;
  • imparcialidade, situação na qual pagadores de impostos em situação semelhante devem ter tratamento isonômico;
  • proporcionalidade, referente ao modo de alocação de recursos pelo Fisco, tendo em vista uma perspectiva ampla, conforme as prioridades de fiscalizações e as questões relevantes, inibindo as ações improdutivas ou excessivamente onerosas;
  • abertura pela transparência e divulgação, que ocorre primordialmente a nível institucional, e envolve a adoção de medidas que facilitem ao contribuinte o cumprimento de suas obrigações, como, por exemplo, o esclarecimento de dúvidas e a realização de audiências públicas sempre que necessárias;
  • capacidade de resposta, traduzida no oferecimento ao Contribuinte, sempre que possível, de soluções a questões geradoras de incertezas jurídicas, mediante o reconhecimento da segurança jurídica como um valor fundamental.

No ano de 2013, a OCDE propôs o modelo de conformidade cooperativa fiscal em substituição ao modelo de relacionamento aprimorado. A justificativa para o novo modelo consistia em reforçar a conformidade não apenas como um processo, mas também como um objetivo da gestão de risco tributário pelas Administrações Tributárias, conformidade esta que significa o pagamento de tributos na quantia, tempo e modo corretos. A bem da verdade, o novo modelo não apresentou grandes modificações em relação ao antigo, mantendo-se todos os pilares fundamentais, representando antes uma adequação da nomenclatura, a considerar que as ações e programas de conformidade fiscal devem ser estendidos a todas as categorias de Contribuintes.

Neste ponto, são percucientes as observações de Lucas Cavalcante[4]:

“A mudança do conceito se mostrou mais adequada aos fins legítimos do programa, que teve o objetivo de esclarecer críticas relacionadas a eventuais desigualdades no tratamento a ser conferido aos contribuintes, como se o programa fosse voltado a oferecer tratamento privilegiado a grandes empresas.

A conformidade cooperativa se insere dentro de um contexto mais amplo e mais antigo dentro da OCDE que trata da conformidade tributária em termos gerais, programas que tem como base o gerenciamento de riscos pela administração tributária, por meio da resposta adequada ao comportamento específico de cada contribuinte, medido pela avaliação do grau de inconformidade”.

Tem-se, assim, a conformidade fiscal cooperativa como uma intensificação dos esforços em direção de um relacionamento fundado sob o paradigma do serviço. O modelo pretérito formulado pela OCDE tinha claramente como foco os grandes pagadores de tributos, muito pelo qual as estratégias e recomendações de formulações de programas próprios de conformidade eram direcionados a eles. O novo modelo tem uma preocupação mais ampla, orientada para uma gestão de risco tributário mais integralista, com o direcionamento de esforços adequados e específicos para cada tipo de Contribuinte.

Os programas específicos de conformidade fiscal cooperativa têm o caráter de voluntariedade, ante suas elevadas exigências de divulgação e transparência (full disclosure), acima do que é exigido legalmente. Ademais, eles podem ser restritos a Contribuintes que satisfaçam determinados critérios objetivos quanto à assiduidade e à consistência no cumprimento de suas obrigações, posto que estes programas não acarretam um abrandamento no pagamento dos tributos, mas, sim, a estipulação de regras diferenciadas quanto ao modo em que o relacionamento entre as partes funcionará, visando à simplificação, certeza e transparência tributárias. Observa-se, ilustrando este ponto, os apontamentos de Carlos Otávio Ferreira de Almeida:

“Geralmente, o compliance cooperativa não demanda alterações legislativas, mas apenas acordos formalizados diretamente com o contribuinte. Do mesmo modo, o ingresso num programa de compliance cooperativo comumente é ofertado a determinada classe de contribuintes que deve satisfazer critérios objetivos, como complexidade de estrutura ou de operações e participação na arrecadação tributária. Fato é, todavia, que este ingresso depende, em último grau, do grau de risco que o contribuinte candidato representa à conformidade fiscal. Assim, aqueles qualificados como de alto risco dificilmente poderão participar de um programa cooperativo de conformidade. Antes, deverão melhorar sua avaliação de risco através de um comportamento crescentemente conforme, até satisfazerem os requisitos de ingresso”.

No Brasil, apesar da persistência no paradigma do crime, há iniciativas de conformidade fiscal cooperativa que fomentam um caminho de maior integração entre os sujeitos da relação jurídico-tributária. Destacam-se, suscintamente, a Lei nº 13.988/2020, que dispõe sobre a transação tributária, recentemente alterada em parte pela Lei nº 14.375/2022, os programas de conformidade fiscal “Nos conformes”, do Estado de São Paulo, “Receita 2030”, do Estado do Rio Grande do Sul, “Contribuinte Pai d’Égua”, do Estado do Ceará, “Confia”, da Receita Federal do Brasil, e a formulação embrionário do Código de Defesa do Contribuinte, de âmbito nacional (Projeto de Lei Complementar nº 17/2022).

CONCLUSÃO

A prevalência do paradigma do crime nas relações entre Fisco e Contribuinte apresenta manifesta desconformidade com as normas constitucionais que tratam dos direitos fundamentais e do Sistema Constitucional Tributário, cujas consequências diretas são o incremento da litigiosidade tributária, ocorrência do tax gap e a criação de um permanente estado de insegurança jurídica, prejudicial ao bom funcionamento do Estado de Direito.

Torna-se, então, premente a adoção do paradigma do serviço, fundamentado na confiança entre as partes, respeito, simplificação no cumprimento das obrigações tributárias, auxílio às dúvidas e reivindicações do Contribuinte, moralidade e certeza tributárias. Este se configura na melhor alternativa para se alcançar um efetivo estado de segurança jurídica em matéria tributária, fundada na previsibilidade e legítima proteção das expectativas do Contribuinte, orientando-o em suas atividades econômicas.

A Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE, em vista destas questões, tem propostos modelos para a melhoria do relacionamento entre Fisco e Contribuinte. No ano de 2008, foi proposto o modelo de relacionamento aprimorado (enhanced relationship) e, no ano de 2013, foi proposto o modelo de conformidade fiscal cooperativa. Os dois modelos apresentam muitas semelhanças entre si, porém a conformidade fiscal cooperativa apresenta uma perspectiva mais ampla, visando a uma gestão fiscal de risco mais integralista, focando em todo o universo de Contribuintes.

Os pilares da conformidade fiscal cooperativa são:

  • pelo Contribuinte – transparência e divulgação (full disclosure);
  • pelo Fisco – entendimento baseado em consciência comercial, imparcialidade, proporcionalidade, abertura pela transparência e divulgação e capacidade de resposta.

O modelo da conformidade fiscal cooperativa representa uma intensificação dos esforços em direção à transição do paradigma do crime para o paradigma do serviço. No Brasil, felizmente há a adoção cada vez maior de medidas visando a este modelo de conformidade fiscal, contudo a prevalência do paradigma do crime ainda é marcante, a contribuir para a manutenção de um estado de insegurança jurídica, cujas consequências são um sistema tributário instável e disfuncional.


[1] Cavalcante, Lucas Ernesto Gomes. Conformidade fiscal cooperativa: novas perspectivas para o relacionamento entre o fisco e o contribuinte, página 57. Orientação: Hugo Brito Machado Segundo. 2021. 120f. Dissertação. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021.

[2] Ávila, Humberto. Segurança Jurídica: entre permanência, mudança e realização no Direito Tributário, página 268. 1ª Edição. São Paulo. Editora Malheiros Editores, 2011.

[3] Torres, Heleno Taveira. Direito constitucional tributário e segurança jurídica: metódica da segurança jurídica do sistema constitucional tributário, página 32. 3ª Edição. São Paulo. Editora Thomson Reuters Brasil, 2019.

[4] Cavalcante, Lucas Ernesto Gomes. Conformidade fiscal cooperativa: novas perspectivas para o relacionamento entre o fisco e o contribuinte, página 61. Orientação: Hugo Brito Machado Segundo. 2021. 120f. Dissertação. Universidade Federal do Ceará, Fortaleza, 2021.


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