Insegurança jurídica: as divergências entre Carf e Judiciário sobre o ICMS na base do PIS/Cofins

De um lado, o Judiciário e, de outro, um órgão administrativo que representa o Ministério da Fazenda. Cada qual em sua esfera, os dois travam uma batalha silenciosa que, há décadas, perpetua a insegurança jurídica das empresas brasileiras naquilo que virou a tese do século: os créditos presumidos de ICMS da base de PIS e Cofins.
Sâmia Frantz
Sâmia Frantz

Introdução

De um lado, o Judiciário e, de outro, um órgão administrativo que representa o Ministério da Fazenda. Cada qual em sua esfera, os dois travam uma batalha silenciosa que, há décadas, perpetua a insegurança jurídica das empresas brasileiras naquilo que virou a tese do século: os créditos presumidos de ICMS da base de PIS e Cofins.

A ausência de uniformidade entre Judiciário e Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) se desenrola há décadas. Se no Judiciário, as decisões estão pacificadas e têm sido favoráveis ao contribuinte, retirando os créditos presumidos de ICMS da base de PIS e Cofins; no Carf, o entendimento caminha pelo sentido contrário. 

Esse vai e vem nas discussões parecia, enfim, ter terminado em maio de 2021, quando o STF julgou o Recurso Extraordinário nº 574.706/PR, submetido ao rito da repercussão geral. Mas não foi o que se esperava. Nem um ano depois, algumas decisões do Carf reacenderam os debates – e também as inseguranças dos contribuintes.

Os tributos e o início das discussões

Toda a discussão atual envolvendo a chamada “tese do século” gira em torno de uma questão que não está clara na Constituição Federal: se o ICMS (que é recebido pelo vendedor) faz mesmo parte da receita ou faturamento da empresa para, assim, ser considerado base de cálculo do PIS e Cofins.

O PIS e a Cofins são tributos federais e estão no centro de diversas discussões judiciais desde que foram criados, na década de 1970. Eles incidem sobre a receita bruta ou o faturamento das empresas e são devidas à União.

O ICMS, por sua vez, também é um velho conhecido dos tribunais. Há pelo menos duas décadas, ele aparece em pedidos, petições e recursos dos contribuintes pelos mais variados assuntos. Trata-se de um tributo estadual, que incide sobre o valor da operação de circulação de mercadorias ou prestação de serviços.

As discordâncias mais evidentes entre Fisco e contribuintes, no entanto, começam já na base: o que, de fato, pode ser considerado como receita de uma empresa. Para o Fisco, a receita bruta é um conceito de natureza contábil, que envolve a soma de todas as vendas de bens e serviços e dos tributos incidentes sobre elas – diferente da receita líquida, por exemplo, que nada mais é do que o total da receita bruta, sem os tributos sobre ela incidentes.

Os contribuintes, no entanto, discordam desse entendimento. Para eles, o conceito de receita previsto na Constituição Federal não seria uma questão contábil, mas, sim, jurídica e estaria voltada ao montante que, efetivamente, entra em seus cofres e agrega ao seu patrimônio.

Esse argumento tem lógica, especialmente porque a tributação brasileira está baseada na capacidade contributiva do contribuinte. Assim, não faria sentido assumir uma tributação baseada em uma riqueza que tem outra destinação e não pertence ao contribuinte, mas, sim, ao Estado.

Essa discórdia conceitual faz o assunto chegar ao Judiciário há décadas, em uma chuva de ações judiciais. Ao acionar a Justiça, os contribuintes tinham esperança de reverter as decisões administrativas, proferidas pelo Fisco e desfavoráveis às empresas. 

O caso dos créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins

De tantas idas e vindas jurídicas, o assunto foi parar no Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas foi provocada pela ImCopa, uma empresa de importação, exportação e indústria de óleos do interior paranaense que, em dezembro de 2007, acionou a mais alta Corte do país para questionar um acórdão do Tribunal Regional Federal da 4ª Região (TRF-4) que lhe desfavorecia. A decisão, no caso, determinava a integração do ICMS na base de cálculo da contribuição para o PIS e Cofins. 

Na Corte Superior, a ação da ImCopa teve a sua repercussão geral reconhecida em abril de 2008 e se transformou no RE 574.706/PR, que viria a se tornar o julgamento definitivo sobre o tema.

Esta ação foi aceita pelo STF principalmente por versar sobre a mesma temática de outro Recurso Extraordinário já em trâmite desde 1998, o RE 240.785, e também da Ação Declaratória de Constitucionalidade (ADC) 18, interposta em 2007 e que vinha sendo utilizada como argumento pela Fazenda Nacional para pedir a suspensão do RE 240.785.

A primeira manifestação do STF sobre o assunto dos créditos presumidos de ICMS na base de cálculo do PIS e Cofins ocorreu em outubro de 2014, quando os ministros finalizaram o julgamento do RE 240.785 e, pela primeira vez, reconheceram a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base dos tributos. A ADC 18, por sua vez, acabou sendo julgada prejudicada logo depois disso, em razão do julgamento do RE 574.706/PR em repercussão geral.

Apesar de ajuizado em 2007, o RE 574.706/PR só foi julgado pelo STF dez anos depois, em março de 2017. Na ocasião, os ministros acataram o argumento de que o ICMS representa uma receita transitória para as empresas, uma vez que os valores são repassados para o Estado arrecadador. Assim, determinaram a inconstitucionalidade da inclusão do ICMS na base de cálculo do PIS e da Cofins, fixando a tese de que “o ICMS não compõe a base de cálculo para fins de incidência do PIS e da Cofins” (tema 69 de repercussão geral). 

A Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, no entanto, opôs embargos de declaração em face desta decisão, fazendo dois pedidos:

  • a quantificação do ICMS a ser excluído da base de cálculo das contribuições – se aquele destacado nas notas fiscais ou o que foi efetivamente pago pelos contribuintes; 
  • a modulação dos efeitos da decisão.

Começava aí um novo capítulo da novela do ICMS na base de cálculos do PIS e Cofins.

A decisão do STF em maio de 2021

A mais recente decisão sobre o assunto, o julgamento do RE nº 574.706/PR, em maio de 2021, ocorreu em resposta aos embargos de declaração opostos pela Fazenda Nacional, após a análise inicial do feito em 2017. 

Ao analisar os embargos, no julgamento de 2021, o STF concluiu que o ICMS a ser excluído da base de cálculo do PIS e Cofins se refere àquele destacado na nota fiscal da operação de venda (saída), e não apenas o que foi efetivamente recolhido. Além disso, determinou que a modulação dos efeitos esteja vinculada à data em que foi julgada a tese principal – no caso, a partir de 15 de março de 2017. 

A decisão do STF fez os contribuintes comemorarem, principalmente por lhe darem o direito de recuperar tributos já recolhidos, devidamente corrigidos por juros de mora (taxa Selic). 

Assim, as empresas que já vinham discutindo a temática de forma judicial ou administrativa até 15 de março de 2017, poderiam compensar os valores pagos a maior nos cinco anos anteriores ao ajuizamento do pedido.

Já aqueles que não ajuizaram ações até aquela data, passaram a ter direito ao ressarcimento dos valores pagos a maior somente após a data de 15 de março de 2017, o que poderia ser feito de forma administrativa, através das obrigações acessórias. 

Os créditos a serem devolvidos são milionários, o que torna o assunto a maior discussão tributária em termos de valor até o momento. Para as empresas, a economia alcançaria de 0,15% a 1,85% do faturamento. Para a União, no entanto, o impacto é ainda maior.

Estima-se que a retirada do ICMS da base do PIS e Cofins pode representar uma perda de R$ 120 bi aos cofres federais, considerando a compensação a ser paga pelo governo em relação ao período de 2017 a 2020. 

O cálculo, feito pela Instituição Fiscal Independente (IFI), vinculada ao Senado, prevê ainda que a União também perderá cerca de R$ 64,9 bilhões em arrecadação por ano até 2030, o que equivale a 0,6% do Produto Interno Bruto (PIB). 

A posição contrária do Carf

O Carf, no entanto, tem se mantido resistente a essa tese. Poucos meses após o último julgamento do STF sobre o assunto, o órgão passou a decidir de forma contrária à jurisprudência, trazendo à tona novos elementos que voltaram a reacender o assunto.

Em uma das mais recentes, em abril de 2022, por exemplo, a 3ª Turma da Câmara Superior decidiu, por cinco votos a três, que os créditos presumidos compõem a base de cálculo das contribuições. 

O tribunal administrativo, no entanto, analisou o tema por um aspecto diferente da Justiça: não entrou no mérito conceitual da receita, mas se limitou a defender que, para fazer jus à isenção, o contribuinte deve cumprir os requisitos previstos na Lei nº 12.973/2014 e contabilizar os valores em reserva de incentivos fiscais. Só assim o benefício seria considerado subvenção para investimento e, portanto, ter acesso ao benefício fiscal.

No entanto, especialistas de todo o país questionam o entendimento do Carf baseado nesta análise. Isso porque o reconhecimento que os créditos presumidos não têm natureza de receita já encerra, por si só, os debates envolvendo a incidência do PIS e Cofins. E, portanto, precede o debate sobre subvenção para custeio ou investimento levantada pelo Carf, o que não faria sentido.

Há quem diga, no entanto, que esta é uma forma do Fisco tentar mitigar os impactos fiscais do julgamento do STF, considerando os valores bilionários que decorrem dele. Mas não só isso. O Fisco também teme os desdobramentos jurídicos e econômicos que também podem decorrer desse julgamento, as chamadas “teses filhotes”. As teses filhotes, que já inundam o Judiciário, se baseiam no raciocínio usado pelo STF no julgamento do RE 574.706/PR, mas direcionado a outros tributos, como é o caso, por exemplo, da exclusão do ISS da base de cálculo do PIS e Cofins.

O fato é que decisões opostas sobre o mesmo tema, como acontece neste caso, geram insegurança para os contribuintes. E claro, também se tornam um incentivo para ajuizamento de ações na esfera judicial, principalmente em caso de decisão desfavorável na via administrativa.

Mas não é só isso. Tais divergências abrem espaço para que o tema, mais uma vez, volte a ser enfrentado pelos tribunais superiores, a fim de que as novas questões sejam unificadas e padronizadas. No caso, obriga o STF a se debruçar sobre o Recurso Extraordinário nº 835.818, um desdobramento do resultado do julgamento do RE 574.706/PR que teve sua repercussão geral reconhecida em novembro de 2015. Desta vez, o STF precisa avaliar questões que envolvem a apuração e a quantificação dos créditos a serem pleiteados de forma administrativa ou judicial.

No entanto, esta discussão também está longe de acabar, pois ainda não há data para o tal julgamento.

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